# 3 - FreeBritney, Byung-Chul Han e muitos filmes
17 de fevereiro, em São Paulo.
Oi!
Como estão as coisas por aí? Espero que bem, em alguma medida.
Por aqui, em um estado de suspensão. Já sentiu isso? Aquela sensação estranha e, ao mesmo tempo tranquilizadora das coisas no lugar, sabe aquele olhar de cima, quando você arruma seu quarto e fica contemplando... 😏
Mas por que as coisas estão tão no lugar assim? Bom, deixa para lá por enquanto...
Estou com dois dias de atraso (na news #1 me propus a enviar as cartinhas dias 15 e 30), mas ok, não estou me culpando por isso não, não deu, não deu, uai.
Ah, estou animada, pois aqui são 37 pessoas inscritas. Amando escrever para 37 diferentes visões de mundo. Espero que estejam gostando! Continuarei, pois tem me feito bem escrever, reescrever ...
(Só lembrando que me empolgo, então a carta fica extensa. Assim, é preciso abrir a mensagem até o final, certo? 🤙 )
Bom, vamos à cartinha de hoje?
ALGUMA REFLEXÃO SOBRE TUDO
Aqui você não verá a Britney careca
Assisti ao documentário sobre a vida da Britney Spears esses dias, o Framing Britney Spears, produzido pelo The New York Times e lançado agora, dia 6 de fevereiro na Hulu e na FX.
Fiquei impactada. Lembrei da pré-adolescência.
Quando eu era mais jovem, com uns 11 anos, minha avó Ada me presenteou com um mini system e alguns cds: Backstreet Boys, o Backstreet's Back (o da baladinha “Long as You Love Me”), Hanson, Middle of Nowhere (da batida eletrizante de “MMMBop”) e, claro, o das Spice Girls, com o Spice World (me lembro que chorava com “Viva Forever”, senhor!). Digo claro porque, naquela época, muitas de nós queríamos ser uma das Spices, tentávamos copiá-las de alguma maneira, nas roupas e dancinhas – até hoje não sei com qual delas me identifiquei.
Para nós, meninas, o mundo era dividido entre garotas & garotos. Meninas vestem rosa, meninos, azul e segue o bonde – dicotomia clássica, como a Damares preconiza hoje, né. Apesar do crescente interesse pelos meninos (o eterno jogo, caro/a!), queríamos conquistar os meninos sendo como essas meninas dos grupos, descoladas e dançantes.
Essas lembranças a respeito de boy bands e grupos de meninas são dos longínquos anos 90, na verdade a passagem de 1999 para os anos 2000, o bug do milênio, a doença da vaca louca e ... a Britney Spears. ❣️
Foi a guinada para uma relação mais individual, de culto ao corpo e de posicionamento feminino, de como as meninas deveriam ser e agir. Me lembro de pensar sobre isso, do quanto ser como a Britney Spears seria o modelo a ser seguido. Mas eu ainda era da galera dos grupos, lembra? Recordo quando assisti ao clipe da escola, os passinhos de jazz, Britney com 17 anos, linda, loira, toda dançante com seu traje colegial supersexy, barriga de fora, no melhor estilo “a mandachuva”. Era mesmo uma imagem relevante para uma pré-adolescente.
Não existe aquela ideia de que a primeira imagem é a que fica em nossas mentes? Pois bem, essa é a imagem que ficou dela, aquela moça cheia de sonhos lá do clipe que fala “my loneliness is killing me”. Sigo preferindo essa garota.
Antes, a leitura era essa: a menina do interior que ganha o mundo apresentando um programa da Disney, com outros jovens promissoramente lindos, depois cantando “Baby One More Time”, influenciando uma séria de outras garotas pelo mundo.
Em 1999, era pré-rede social, com o hit que citei acima, ela quebra a indústria da música. Inclusive, graças a ela, o caminho se abriu pra muitas cantoras, como por exemplo a Christina Aguilera e, nos dias de hoje, Kate Perry, Taylor Swift, Billie Eilish...
Hoje a leitura é outra e é triste.
Do começo triunfante aos nossos dias, muita água rolou com a moça, viu? De tentativas frustradas ao quase apagamento na história da música, diante de tantas outras princesas do pop. Mais um caso de aniquilação e massacre midiático em nome de fama e sucesso. E ela está passando por algo inimaginável!
Voltando para aquela época, o boom dos anos 90/00, o caso Lewinsky e Clinton e o sexo (que sempre se vendou só) foram o palco ideal para o aparecimento de uma nova princesa do pop. Mas é claro que essa imagem de mulher jovem e bem sucedida deve ser atrelada à imagem de um homem, igualmente jovem e bem sucedido. Justin Timberlake foi o eleito. Porque, afinal, uma mulher deve ser jovem, branca, rica, magra, casar, ser esposa e ter filhos. Essa é a forma, esse é o caminho. (contém ironia)
O relacionamento dos dois foi assunto dos jornais sensacionalistas por muito tempo (assim como tudo que a envolvia, virgindade principalmente), mas teve um fim após acusações de traição feitas por Justin, que fez até um clipe sugerindo isso, o Cry me a River. Mais uma narrativa criada para que um homem esteja por cima da história de uma mulher, num clássico caso de misoginia, em mais uma página para o julgamento moral nas costas da garota.
(Justin, após 20 anos, pede desculpas.)
O ano de 2007 foi o pior para Britney, em processo de separação com Kevin Federline, com quem teve 2 filhos, vivendo intensa perseguição da mídia, paparazzis infernais, enquanto luta pela custódia das crianças. Aí talvez seja o grande start para os acessos de fúria e surtos amplamente veiculados da artista: para acertar um carro com um guarda-chuva, ficar careca, sair com Paris Hilton e Lindsay Lohan pra balada e abusar de drogas e álcool foi um pulo, tadinha, uma puta fuga desse mar de exposição e dor. Eu não julgo, me coloco em seu lugar.
>> Naquele período não se falava sobre saúde mental, superexposição, imagem, dor e sofrimento? Talvez não com esses termos, mas ninguém questionava o quanto a garota estava sofrendo? A imagem dela chorando na calçada é demais! Acho que não passou pela cabeça de ninguém que um colapso, uma estafa sem precedentes poderia acontecer com a maior artista pop da geração? Um banimento cruel e fugaz. Muita pena! <<
Talvez esses devessem ter sido os piores anos para Britney. Mas, vendo por outro ângulo, vejo que logo após todos os episódios massivamente veiculados por uma mídia cruel e insana, o que ela vive hoje em dia é mais devastador e limitante. Britney inaugurou para o ramo das celebridades um dispositivo jurídico chamado de “conservatorship”, que aqui podemos chamar de curatela. Sim, ela é curatelada pelo pai há 13 anos e todos os seus bens e movimentos são administrados por ele. Ela não pode dirigir, nem ver os amigos, namorar em paz, nada.
Um movimento de fãs e admiradores da artista, o #FreeBritney, cresce nos EUA depois que um podcast destinou-se a “decifrar” os posts da artista no Instagram, alegando que eles sugerem pedidos de socorro em legendas cifradas, denotando um possível cárcere. Olhei a página dela e também fiquei surpresa. Uma felicidade falsificada em dancinhas e posts motivacionais. .
Sobre o documentário, Britney disse:
“Cada pessoa tem sua história e suas opiniões sobra as histórias de outras pessoas. Nós temos muitas, diferentes, lindas e brilhantes vidas. Lembre-se, não importa o que acham que sabem sobre uma pessoa, isso não é nada comparado ao que realmente a pessoa está vivendo atrás das lentes.”
Como falei acima, a história que esse documentário me despertou – além de ser uma volta à pré-adolescência, um olhar para 20 anos atrás –, é a que muitos de nós vivemos hoje, seja no nosso microcosmo, ou no que consumimos em termos de imagens, narrativas e espetáculos. E como as mulheres são alvos de opressões gigantescas, que aniquilam, destroçam, subjugam, massacram suas histórias de vida e seus sonhos. Ser mulher é lutar contra padrões e modelos, expectativas, erotismo banal, entretenimento, misoginia/patriarcado, pais e namorados e ex-maridos obcecados! Assim como o pai da Britney a gerencia hoje, o espetáculo gerencia nossas vidas também.
E sobre o espetáculo, há a ideia de Guy Debord, dizendo que o espetáculo inverte o real e o transforma em mera mercadoria, em imagens, em aparência e que, como consequência, transforma todos nós em meros expectadores. A Britney se tornou, desde cedo, essa imagem, hoje uma imagem deturpada, é uma pena. É dessa “indústria cultural” de que somos reféns e que a Britney é refém em todos os sentidos, há bastante tempo.
E, mais uma vez: 👊
ALGUMA REFLEXÃO SOBRE TUDO (e outras)
Byung-Chul Han, filósofo coreano, aborda sobre alguns conceitos, como digitalização, autoexploração e a ideia da multitarefa.
Grosso modo, o autor faz a comparação entre o sistema panóptico, aquele do Foucault, e a era digital de hoje, o acesso aos dados e a manipulação deles para os interesses mercantis. Hoje as pessoas sentem-se amplamente livres, donas de suas próprias escolhas na internet, mas na verdade estão tão presas e controladas como sempre – e como nunca! E o mais bizarro desse falso autocontrole? Somos nós mesmos que entregamos tudo isso de graça, em pensar, automática e deliberadamente! Estranho, né?
Ele diz que hoje vivemos num estado de “doping”, como o dos atletas, num "desempenho sem desempenho”, gerando o esgotamento e o infarto da alma. Essa busca por desempenho gera a autoexploração, que é mais prejudicial que a exploração do outro, pois vem fantasiada de liberdade. Uma liberdade camuflada, então, paradoxal. Assim, “os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal”.
Sobre multitarefa, que se trata de um conceito ligado ao tempo e à atenção, Han vai dizer que não representa em nada algum tipo de progresso, mas sobre retrocesso, se assemelhando à vida selvagem dos animais. A hiperatenção, com a rápida mudança de foco, toma o lugar do sono (físico) e do tédio profundo (descanso espiritual), importantes ao processo criativo. Han ressalta que a hiperatenção é dispersa e superficial, anulando o estado contemplativo da vida.
Estamos todos muito cansados, não é mesmo?
UMA OLHADA PELO CIBERESPAÇO
Agora, algum um respiro! Porque eu vim ladeira abaixo com a realidade e a constatação do fim, né?! hehehehe
Coisas que vi por aí:
- Parece que está aberta a temporada de filmes! Tento ver os filmes candidatos ao Globo de Ouro e que são possíveis candidatos ao Oscar também. Nesta lista, já foram:
Nomadland (Chloé Zhao) – melhor roteiro, atriz, diretor e filme de drama: com a maravilhosa Frances McDormand, perfeita e solitária num filme sobre solidão sem ser piegas, muito sensível;
Another Round (Thomas Vinterberg) – melhor filme de língua estrangeira: apologia ao álcool forte, uma tragicomédia. Atenção para a dança final do perfeito Mads Mikkelsen, perdendo apenas para John Travolta em Pulp Fiction (épico);
Sound Of Metal (Darius Marder) – melhor ator de drama: eu já falei do filme aqui na news passada, mas reitero, porque é muito bom. Riz Ahmed está demais!
Soul (Pete Docter) – melhor animação: confesso que “buguei” assistindo Soul. Talvez o cunho existencial do filme... Difícil pensar sobre qual é o nosso propósito aqui, né? É bem tocante, sem dúvida. Atenção para essa ilustração.
- Ainda na linha dos filmes, domingo (14) a plataforma de streaming Mubi estava aberta para “degustação” – amo e odeio essa palavra... Então, assisti alguns bons filmes por lá, mas como já falei bastante sobre filmes aqui, apenas destaco o que mais curti: Swallow (Carlo Mirabella-Davis, 2019). Uma mulher grávida com a aparente vontade normal de engolir objetos... estranhos... perigosos... improváveis. Puramente melancólico. Contém gatilhos. Na mesma linha da melancolia, tem o Paterson (Jim Jarmusch, 2017), filme arrastado mas bastante bonito, sobre poesia e rotina.
- Assinei a newsletter da Sarah Germano, do maravilhoso Invasões Germânicas. Ela fala sobre livros, plantas e humanos com bastante leveza e realidade. Acessa e assina também! Num dos textos, vi esse artigo, em inglês (joga no Google tradutor 😊), sobre as coisas que devem ser feitas para passar por qualquer coisa. Compartilho aqui também com você.
- O poder de um livro ♥
- Sobre livros, esses dias fiquei off de qualquer um. Na verdade, estou concluindo o Cartas Extraordinárias - amor, organização de Shaun Usher. Atenção especial para a carta da Frida pro Diego, um amor louco. Há quem diga que a carta não foi escrita por ela. Aqui um artigo sobre o esvaziamento da artista e sua transformação em ícone pop.
- Aqui, uma playlist no Spotify com 30 músicas que representam o movimento Riot Grrrl. Pra quem não sabe o que foi esse rolê, aqui uma matéria sobre essas minas fodas!
UM REGISTRO ALEATÓRIO, UM COMENTÁRIO QUALQUER
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Cuide-se,
Fer
💛