# 9 - livros realistas, O deus das avencas e Patti Smith
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22 de outubro de 2021, São Paulo.
Eu voltei, de casa nova, pra ficar!
Depois de uma pausa mais longa do que imaginava, cá estou com mais algumas algumas coisas pra dizer.
Sim, a vida não continua fácil e acho que desde quando iniciei com esses boletins, a vida tá ficando cada dia mais difícil.
Só eu sinto isso, só eu percebo dessa forma? Será que você também interpreta o mundo de maneira a encará-lo como um puta desafio que não acaba nunca, só com a morte?
Fiquei doente, todos aqui, meu irmão foi pra outro país, as contas não param de chegar e continuamos nesse home office de delícias e problemas.
Eu hein, papo brabo! Mudemos então.
Então precisei respirar um pouco, porque não aguento avalanches e tornados. Ter um momento de respiro é importante. Encontro isso em corridas e, principalmente, lendo. Adoro/amo. Talvez um dos meus maiores prazeres.
Qual é o seu respiro?
(pensei aqui agora que, quando mudar de país também, o que farei com a caralhada de livro que eu tenho? o que você faria numa situação dessa, me escreve?)
Bem, li alguns livros desde nosso último papo por aqui (na época da escrita da news 8, lia Os tais caquinhos, da Natércia Pontes).
Para hoje, escrevi algumas coisas sobre o livro novo do Daniel Galera, O deus das avencas, do qual gostei demais.
Vamo nessa?
ALGUMA REFLEXÃO SOBRE TUDO
Livros realistas
Gosto muito do realismo na literatura, mas não necessariamente um realismo “clássico”, no estilo de Machado de Assis, do qual também gosto.
O que me chama atenção, no entanto, é esse retrato do tempo presente, que vai além do que as meras descrições de cenas e espaços e construção de personagem; algo sobre a verossimilhança, mas não só; os fatos que são encadeados num nexo cotidiano palpável, tangível, real, assim como nos entrelaçamentos com as questões em que vivemos em sociedade.
Em livros realistas, o personagem ou o narrador se mostram em suas subjetividades, apresentadas de várias formas: através de graus de parentesco, da relação com o entorno, nas trivialidades do cotidiano, nas visões de outros personagens sobre eles e sobre suas próprias visões de mundo.
Essa consciência se apresenta no texto, mas é solitária muitas vezes, porque paira na superfície, porque depende de uma rede complexa forças sociais e históricas além dos personagens para se materializar.
É difícil descrever a realidade.
No livro Como ler literatura, do crítico inglês Terry Eagleton, há um ponto para se pensar e que se encaixa aqui:
Contar uma história é um empreendimento absurdo... colocar em sequência uma realidade que não é sequencial...
E você, me manda alguns livros realistas que você gostou de ler?
ALGUMA REFLEXÃO SOBRE TUDO (e outras)
No começo da minha vida como leitora, digamos, mais assídua e interessada, me lembro que, no intervalo do almoço, entrava na biblioteca em que trabalhava, num cursinho preparatório para concursos em São Paulo, acessava páginas e pessoas que falavam sobre livros, era o tempo do Orkut; entrei em alguma comunidade sobre livros independentes nacionais, alguém se referia a “máquina de pinball”, “dentes guardados” e aqueles títulos me chamaram atenção. Passei a procurar os escritos desses autores. Dos que citei, respectivamente, temos a maravilhosa Clarah Averbuck e o Daniel Galera.
Daniel Galera é um ficcionista que nasceu em São Paulo, mas vive em Porto Alegre. Escritor contemporâneo de escola realista, tem alguns livros publicados, entre eles o maravilhoso Barba ensopada de sangue e Meia-noite e vinte, ambos já lidos e amados.
Dentes guardados é um dos primeiros livros do autor. Disponível gratuitamente na internet, é um livro de contos publicado em 2001 e que me fascinou na época pela linguagem urbana, crua e dotada de um intimismo muito potente. Me recordo que imprimi sem dó as 80 páginas no fim do expediente no cursinho!
(eu tenho o PDF, se quiser eu posso te mandar, ok ?😉)
Falando em Galera, abaixo não uma resenha, mas algumas impressões sobre seu novo livro, O deus das avencas, lançado pela Companhia das Letras, que também é título de uma música do Caetano Veloso, Pelos Olhos.
O livro é composto três por novelas (gostei do 3 em 1!), que não perdem em complexidade para o romance, gênero do qual Galera explora em outros livros. Novelas são formas interessantes: mais longas que os contos, têm mais possibilidades de exploração dos personagens, enredo e complexidade nas narrativas.
(a editora Antofágica, que publica livros clássicos da literatura mundial tem um post falando sobre as diferenças entre conto e novela. vale ver!)
Voltando...
Começando do fim para o começo, Bugônia é a terceira novela, talvez a preferida. Maravilhei!
Bugônia fala de um futuro bem distante, não consegui inferir que tempo é esse, mas isso nem é tão importante. Há uma comunidade e todos vivem de acordo – ou questionando – as novas formas de existência, em adaptações e rearranjos no que restou.
As abelhas ditam alguns processos, tão fundamentais à vida hoje e será sempre, creio.
Há o “necromel” imunizando as pessoas das doenças. Javalis são temidos, o ar é seco, o dia a dia é organizado, mas prestes a ser desmontado.
Gostei de pensar num fio traçado na história, que é também uma espécie de disputa entre o passado – as memórias – aquele que alerta sobre o que já foi, que “estende” a experiência das pessoas, marcando feitos e prevenindo dos erros, num confronto com a experiência presente e a seguinte, que assume uma postura atenta e generosa no agora, na realidade posta.
Existe uma relação de codependência? Só há um futuro a partir de um passado? É possível “passar a régua” e começar do zero?
Gostei especialmente das reflexões de Chama, a personagem central da novela. Num ensinamento da Velha, a matriarca da comunidade, para Chama:
“... os desenlaces não dependem da clareza da nossa visão. Pelo contrário. A clareza, quando ocorre, faz parte do desenlace.” (p. 226)
(“bugônia” não é “begônia”, uma planta muito bonitinha. esse título vem um mito antigo, segundo explicação do autor. corri pra buscar. fez todo sentido)
*
A segunda novela é Tóquio, tão linda, tão possível, tão filosófica e versa sobre a memória, dentre outros temas.
Diferente de Bugônia, Tóquio se passa em São Paulo e já é possível especular sobre os caminhos desse mundo para nós, humanos, diante de tamanho controle e domínio tecnológicos e dos recursos que estão findando.
Pelo início da novela é possível entender que se trata de um filho com algum problema com a mãe, a ponto de querer “matá-la”: agora um “formatar”, um “apagar”, um “deletar”, novas formas de matar ou morrer. Há bastante solidão nessa história.
Pós-mundo, pós-humanos, gadgets, dispositivos, “pupas”, ou versões de si armazenadas, dados, bytes, digitalização do conteúdo cerebral, realidade virtual, cópias, o self e como as empresas do capitalismo do futuro produzem o cenário por dinheiro e ambição.
(selfie, opa, mas já não é como chamamos hoje nossas fotos frontais?)
É a manutenção de uma vida que já não é vida. Ou uma nova forma de vida?
Na Associação de Pesquisas e Práticas em Pós-Humanidades, um filho tenta compreender seu desejo de matar/desligar a mãe, após a mesma ter se submetido ao processo de armazenamento de identidade em um dispositivo anos atrás. Nas reuniões do grupo de apoio – sim, há um grupo que se reúne numa sala subterrânea para conversar e entender a situação, para lidar com seus entes armazenados – é aprendido que o ser humano pode estabelecer vínculos emocionais com qualquer coisa, mas este novo vínculo deve ser transformado.
Veja que ainda há conversa, pelo menos...
A questão aqui é o quanto todos estamos presos a guardiões, nosso próprio self, a forma como nos apresentamos no mundo, do quanto também somos presos e ligados às nossas próprias imagens! Também do quanto somos ligados a dispositivos, numa relação verdadeiramente familiar e afetiva.
E uma questão mais especulativa ainda é pensar que pessoas que amamos um dia também podem sentir, lembrar, se emocionar, numa nova configuração da vida, dentro de “ovos” aquecidos, cápsulas familiares, artefatos queridos ...
“O que eu disse, mãe, foi: ‘Sinto falta de você’” (p. 166)
*
O deus das avencas é a novela que abre o livro. Contemporânea e a mais realista do livro, se passa em 2018, em Porto Alegre.
Brasil de 2018 foi o quê? Eleições, com bolso tomando o poder – maior distopia não há.
Um homem e sua companheira, Lucas e Manuela, estão prestes a ter um bebê. Estão em casa, unidos, sentindo um ao outro e atravessando os dias que antecedem a vinda do filho.
(embora ele não possa nunquinha da silva sentir o que ela sente).
A cumplicidade, o nível de intimidade, de ternura e a permanência das certezas daqueles momentos – de si, do corpo, dos ideais, do posicionamento no mundo – me deixou sensibilizada. Me senti naquele apartamento, com aquelas pessoas, naqueles dias angustiantes e ansiosos de medo antes do parto. Imagina, é uma vida e é um estado de coisas também.
Lindo, um livrão!
Um viva pra literatura contemporânea brasileira!
PARA POSTERIDADE: O QUE ACONTECE HOJE EM 1 IMAGEM
Dia 4 de outubro as redes sociais colapsaram por quase sete horas. O mundo colapsou junto. Me perguntaram “mas e as pessoas que trabalham pelas redes?”. Pensei: devem existir novas e antigas formas de se viver, não é possível!
QUEM CONTA?
Quem conta de hoje é a rainha Patti Smith, em sua newsletter mais que maravilhosa.
Ela envia mensagens de voz, poemas, canções e textos.
Destaco aqui um que me tocou. Segue um trecho:
“Ultimamente tenho achado um tanto difícil tomar decisões, concentrar-me em um livro, redigir uma mensagem simples, lavar minha roupa, atender o telefone e, apesar de uma infinidade de assuntos disponíveis, concluir a tarefa em mãos. Existe uma ansiedade subjacente, incomum e certamente indesejada. Sei que sou perfeitamente capaz de fazer tudo o que há para fazer. No entanto, uma estranha paralisia, combinada com a diminuição do entusiasmo, parece pairar sobre tudo, como uma poeira pós-pandêmica...”
Patti disse numa entrevista: "Toda manhã, por algumas horas, eu sento e escrevo". É a melhor forma de começar a escrever, mais e melhor. Todos os dias.
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UMA OLHADA PELO CIBERESPAÇO
Há um tempo assisti I May Destroy You e te recomendo DEMAIS!
A produção é toda da maravilhosa-faz-tudo Michaela Coel, uma atriz, roteirista, cantora, compositora inglesa que soube bem abordar assuntos atuais e urgentes.
Lançada em 2020 pela HBO, I May Destroy You conta a vida de Arabella que, depois de ter sido estuprada após ter sua bebida “batizada”, lida com todas as consequências para superar este trauma, incluindo tentar se lembrar de todo o ocorrido. Acompanhada por seus amigos – que também têm suas histórias paralelas às dela –, Arabella vai se redescobrindo, tentando se reconstruir, a partir destes momentos desoladores. Mesmo em meio a uma história sombria e triste, a atriz, roteirista e produtora da série, consegue mostrar algo de luminoso nesse caminho. A série ganhou como melhor roteiro do Emmy Awards em setembro. Excelente atriz, história potente! Eu simplesmente amei!
(a Michaela participará do próximo filme da Marvel, Pantera Negra 2)
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Quer distrair entre uma reunião e outra? Uns doguinhos, vários, só apertar a tecla de espaço do seu note ou pc (celular não rola).
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No dia 15 de outubro se comemora o Dia dos Professores, profissão de vida, da qual admiro muito. Aqui uma matéria da Gama sobre os professores que mudaram a vida de algumas pessoas. Você se lembra daquele professor ou professora que te modificou? Lindimais!
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Um pouco sobre a Coréia do Sul e a alegoria que é Round 6, na matéria da Jacobin.
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UM REGISTRO ALEATÓRIO, UM COMENTÁRIO QUALQUER
~ foto de Porto, em Portugal, local que meu irmão tá morando. Lindo, ne?
Ei, gostou do que leu?
Me responde aqui nos comentários!
A gente se lê por aí.
A pandemia não acabou!
Um beijo, um abraço,
Fer